Testemunho Cláudia Gomes

TESTEMUNHO DA CLÁUDIA GOMES
Passou um mês desde que me despedi de Inharrime. Se por um lado me parece que foi há imenso tempo, aqui a vida é tão acelerada que arreda lá para trás o dia da despedida, por outro, parece-me que foi ontem e podia contar-vos com detalhe os meus dias de lá, de tão gravados que estão na minha memória.

Podia contar-vos sobre a Irmã Lucília e o seu exemplo de amor ao próximo, um altruísmo que escasseia hoje em dia. O que acontece no Centro Laura Vicuña é incrível, e a alegria das meninas que lá vivem é a maior prova de como é um projeto magnífico. Mas, e este é um grande mas, a ajuda vai muito além dos limites do Centro, há a padaria que permite que a comunidade tenha acesso a pão a preços em conta, há a distribuição de bens alimentares 4 vezes por ano a imensas famílias com dificuldades económicas, há a ajuda aos albinos com chapéus, óculos e protetores solares, há a ajuda com leite em pó a bebés cujas mães não podem ou já não têm leite para lhes dar de mamar... entre muitas outras coisas... impressionou-me que praticamente todos os dias alguém vai ao Centro pedir ajuda por algo, repito, praticamente todos os dias, e a Irmã Lucília está lá sempre para eles, pronta a ajudar.
Podia contar-vos da padaria onde trabalham o Ernesto e o Aunício e de como sabe bem aquele pão acabadinho de sair do forno. De como eu não consegui fazer um único pão com uma forma decente para ser lá vendido. De como foi bom estar a vender na padaria e ter contacto com as pessoas das comunidades locais que vão lá comprar pão. E do viciada que era em comer gulamos, que fazem sucesso na padaria, e são feitos pelas meninas mais velhas praticamente todos os dias.

Podia contar-vos que outro dos dias que senti de perto as comunidades de Inharrime foi no dia 22 de Março, na distribuição de alimentos às famílias das crianças que têm padrinhos. De como aquela gente, apesar de serem tantos, esteve sempre tão ordenada, prestativa e agradecida.

Depois podia contar-vos do dia em que fomos com as meninas do Centro à praia. Os gritos de alegria a subirem para o camião, de irmos sentadas juntinhas umas às outras e a cantar o caminho todo, dos olhares de felicidade trocados entre os voluntários, da excitação de estarem a chapinhar na água e dos jogos de cartas na areia. Foi indescritivelmente bom ver a alegria delas por estarem fora da rotina habitual e num ambiente distinto.

Podia também contar-vos sobre muitas outras atividades que fizemos juntas, da festa de Carnaval, das máscaras que fizémos com elas, de como ensaiaram as danças para a festinha, de como nesse dia todas queriam pintar a cara e de como foi giro vê-las festejar nas suas máscaras. Do divertido que é (tentar) aprender a dançar com elas. Da aula de yoga que fizémos e de como algumas adormeceram profundamente durante a aula. Das muitas e muitas histórias que aconteceram durante as aulas de apoio escolar, que misturaram sorrisos e gargalhadas com lágrimas e amuos. De como nestas aulas de apoio escolar é às vezes delicado perceber qual é a melhor postura a manter e de como se pode tornar complexo isto de lhes ensinar o que sabemos. Como foi especial receber o primeiro desenho. Foi no apoio escolar da manhã que a Fátima me entregou, o título é “Os meninos de todas as cores” e tem uma rapariga desenhada com uma saia rosa e dois totós de penteado que, segundo ela, sou eu. Como era bom chegar à minha palhota e ter raminhos de flores à porta à minha espera ou de como me escapava um sorriso de cada vez que recebia uma carta e lia a frase que aprendem na escola que deve ser escrita nas cartas “Espero que esta carta te encontre de boa saúde”, comum a todas elas.
De como a maioria das meninas mais pequenas vêm logo a correr para os voluntários recém chegados, cheias de amor para dar e a chamarem a nossa atenção a todas as oportunidades que possam. Mas de como a situação inverte em relação às meninas mais crescidas, essas não vêm logo a correr para nós de braços abertos, a essas temos que ir conquistando mais devagarinho, vamo-nos aproximando à medida que os dias vão passando e de repente, quando damos por nós, já somos cúmplices. Do privilégio que é quando nos contam parte da sua história ou se sentam connosco para falar dum episódio típico da sua vida de adolescentes. Podia falar-vos de como muitas vezes fazemos um sorriso forçado quando ao mesmo tempo estamos a engolir lágrimas e de como isso nos faz pensar na sorte que temos.
Podia contar-vos sobre aquela primeira vez que fui até ao dormitório 4, onde vivem as meninas semi-internas do Centro, assim que acabaram de jantar e viram que as novas voluntárias estavam lá vieram eufóricas ter connosco, de como estavam contentes por nos ter ali e como todas queriam uma fotografia junto a nós. Das conversas que se seguiram todas sentadas em rodinha, de como foi bom recordar a minha infância a saltar à corda com elas e de como sempre pediam para passarmos no dormitório delas depois do jantar.

E depois podia também contar-vos de como, apesar de vivermos uma rotina estabelecida, todos os dias são diferentes. De como em cada dia há uma história para contar. Um dos dias mais especiais foi o dia em que conheci o afilhado da minha família, o Biolávio, e os seus irmãos (o Anolêncio e o Zenaldo) e a avó (Zaida). Não foi fácil encontrá-los, viviam muito longe, numa casa de palha no meio do mato e o encontro demorou mais de um mês a acontecer. Mas, por fim, num dia que eu atenvia banal, conseguiram vir ter comigo. O encontro, inesperado, foi um misto de emoções que nem sei expressar em palavras. Apenas sei que foi, sem dúvida, um dos dias mais especiais que vivi em Moçambique, um dia com uma história impossível de esquecer. Tal como foi uma experiência impressionante o dia que fomos conhecer a casa deles. Sabia que era longe e no meio do mato (no mato mesmo, como diz a avó Zaida), mas jamais imaginei o que vi. O caminho bem mais longo e complicado do que imaginei, problemático até. A casa mais pobre e muito mais isolada do que pensei mas com alguns detalhes tão inteligentes. Nesse dia a avó Zaida disse-me obrigada vezes sem conta. E eu repeti sempre, porque apesar de ela não imaginar, tive muito mais a agradecer do que ela. 
Passou um mês desde que me despedi de Inharrime. E num mês cabe muita coisa, mas a verdade é que me apaixonei por elas e o meu pensamento foge para Inharrime todos os dias. Relembro momentos, oiço as músicas delas e revejo as fotografias várias vezes. O meu coração ficou apertadinho depois da despedida mas a transbordar de alegria e felicidade ao mesmo tempo. Um destes dias falei com elas por videochamada e foi o suficiente para ficar com um sorriso parvo na cara o resto do dia. Elas têm esta capacidade, de me fazer relativizar tanta coisa e de poder sentir a verdadeira essência da felicidade. Passou um mês desde que me despedi de Inharrime, mas suspeito que nem o passar dos meses vai ser suficiente para me fazer esquecer cada detalhe dos meus dias de lá.
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